Um Mundo Feliz - Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley
Imagine uma sociedade futurista
que defende uma ideia de felicidade constante baseada na beleza, juventude,
vaidade, erotização infantil, poligamia, consumo exagerado, ausência completa
de religião e um sistema de castas sociais bem definido. Este regime totalitário,
de muita alienação e que manipula a todas as pessoas de forma biológica e
psicológica, compõe o cenário distópico de Admirável Mundo Novo, e as minhas
impressões sobre esta obra prima vocês lerão a seguir.
Peço licença para fazer uma
resenha um pouco maior do que de costume, mas não posso deixar de lado detalhes
tão importantes que fazem de Admirável Mundo Novo um dos melhores e mais
complexos livros que já li. Ao longo do texto vocês irão entender o porquê.
E se você estiver em dúvida quanto
a sua próxima leitura, gosta de distopias e procura um livro inteligente,
reflexivo e com um enredo envolvente , por favor, coloque Admirável Mundo Novo
na sua lista de leitura.
"A felicidade é uma soberana
exigente, sobretudo a felicidade dos outros. Uma soberana muito mais exigente
do que a verdade, quando não se está condicionado para aceitá-la sem
restrições."
Publicada em 1931, a obra
distópica de Aldous Huxley retrata uma sociedade futurista (o que corresponde a
aproximadamente 600 anos fictícios após a publicação do livro), com
características muito mais semelhantes de nossa sociedade do que possa parecer.
A história se passa em 600 anos
d.f (depois de Ford), após a Guerra dos Nove Anos e o estabelecimento das
ideologias "fordianas". Ford é o mentor do regime social vigente e se
mostra como a maior referência dos personagens, que ao longo do livro utilizam
até mesmo expressões como "Que Ford nos ajude!" em uma clara analogia
de Ford a Deus.
A sociedade é dividida em castas
sociais, quais sejam : alfa, beta, gama delta e ípsolons. Estas castas ainda se
subdividem em "mais e menos", classificando as pessoas como alfa mais
ou beta menos por exemplo. Nesta sociedade nenhum humano é concebido por meio
de relações sexuais, todos são gerados em laboratórios e centros que cuidarão
de todo o seu desenvolvimento e condicionamento (sobre o qual falarei adiante).
Curiosamente a concepção tradicional provoca repulsa em todas as pessoas e
qualquer gravidez resulta em um aborto autorizado e recomendado pelo governo.
As castas mais altas (os alfa
mais) são aqueles que gozam das maiores regalias, mantidas às custas do
trabalho das castas inferiores. O consumo é estimulado e qualquer forma de
reaproveitamento é rejeitada, assim como o conceito de família e de privacidade.
Esta sociedade cultua a beleza, a vaidade e a juventude, de modo que, através
da medicina e da manipulação genética e biológica, o envelhecimento externo do
corpo humano é evitado até a morte. A expectativa de vida é baixa e devido às
interferências da medicina as pessoas morrem com um aspecto aparentemente
jovial. Os relacionamentos são meras convenções sociais, pautados pela
poligamia e pela completa ausência de afeto, amor ou paixão.
Talvez o ponto chave para
entendermos essa estranha sociedade, é o condicionamento ao qual todos os seres
humanos são submetidos, que determina a identidade, a casta, o comportamento,
ideologias, preferência e até mesmo parte do pensamento de todos.
O CONDICIONAMENTO:
Concebidos por proveta, todos os
humanos são condicionados de forma biológica e psicológica conforme determina o
sistema e as ideologias de Ford. A separação por castas já é determinada desde
a formação do feto, que é mais ou menos estimulado conforme a casta que irá
pertencer.
As crianças recebem uma educação
sexual intensa, e são apresentadas ao erotismo durante a infância através de
"jogos eróticos". Há um esforço constante em naturalizar e abreviar o
sexo e a sexualidade entre as crianças.
A "modelagem"
psicológica também ocorre muito cedo. Através de gravações incessantes cheias
de determinações durante o sono, treinamentos e testes, as crianças se
desenvolvem de forma padronizada para atender as necessidades sociais. Em um
destes treinamentos, bebês recebem eletrochoque quando tocam livros, posicionados
estrategicamente ao seu alcance. Este teste é repetido inúmeras vezes até que
os bebês associem que livros são algo ruim, e desta forma não se interessarão
em ler no futuro qualquer coisa diferente do determinado.
O conhecimento e a sabedoria são rechaçados,
assim como a história, cultura e arte do passado. Tudo que não é fruto da
"criação fordiana" é atacado.
"Mas o valor de uma coisa
não está na vontade de cada um. A sua estima e dignidade vem tanto do seu valor
real, intrínseco, como da opinião daquele que a tomou. "
O SOMA
Na sociedade em questão não
existem as drogas lícitas que conhecemos como o cigarro e a bebida. No entanto,
as pessoas contam com uma droga ainda mais poderosa: o soma.
Criado para não provocar o mal
estar após consumo, (assim como a bebida provoca ressaca), o soma representa
não apenas uma evasão da realidade, mas também uma forma de manipulação
extremamente eficaz. Além de provocar bem estar físico e alucinações, o soma é
utilizado para controlar a sociedade: as castas inferiores recebem uma pequena
ração da droga ao fim de cada dia de trabalho, o que faz com que trabalhem
cegamente para a manutenção do vício. Por outro lado, as castas mais altas
recebem o soma livremente e toda vez que um ou outro começa a pensar livremente
de forma contrária ao sistema a droga é consumida, voluntariamente ou de forma
obrigatória.
A FELICIDADE
Inicialmente, o livro pode até
sugerir uma utopia, uma sociedade perfeita e feliz. Mas não se deixe levar
pelas aparências: ao longo da história percebemos que esta é uma felicidade
artificial, sem liberdade de escolha e totalmente forjada. É como se as pessoas
fossem obrigadas a serem felizes o tempo todo, sejam os alfas com suas regalias
ou os ípslons com sua subserviência incontestável e manipulada.
BERNARD E O SELVAGEM
Um dos personagens centrais do
livro, Bernard é um alfa mais que não corresponde às expectativas dos
integrantes de sua casta. Em virtude de um erro de manipulação biológica, ele
não apresenta as características de um autêntico alfa mais (como a altura
ideal), todavia, não pode integrar uma casta inferior. Com tendências
introspectivas (algo inaceitável na sociedade fordiana), Bernard é um fiasco
com as mulheres e odeia as convenções sociais obrigatórias de sua casta. Ele se
sente solitário ao ver que não se encaixa em lugar nenhum: não se sente um alfa mais e não pertence a uma casta inferior.
Por outro lado seu amigo
Helmholtz é um homem de sucesso em todos os aspectos: se envolve com muitas
mulheres, é inteligente, competente, tem uma boa interação social e uma
carreira consolidada, representando tudo que se espera de umalfa mais. No
entanto, mesmo com uma vida aparentemente perfeita fulano começa a questionar a
felicidade forçada, a futilidade das mulheres com as quais se envolve (que mais
parecem papagaios do sistema) e se pergunta o porquê de não poder desenvolver
algo diferente em suas pesquisas ao invés de seguir cegamente a "cartilha
fordiana".
Esta solidão une os dois amigos
mas também chama a atenção das autoridades competentes que se atentam para este
"desvirtuamento" dos dois. Em busca de novidades, Bernard parte para
uma reserva de "selvagens", ou seja, as únicas pessoas que ainda não
foram condicionadas. Estas pessoas tem hábitos rústicos e rudimentares. Nesta
viagem ele conhece uma mulher alfa mais que se perdeu e acabou permanecendo
presa na reserva por muitos e muitos anos. Como ela engravidou e estava muito
longe dos centros de aborto, ela acabou dando luz a um filho naquela
comunidade, onde o mesmo cresceu até atingir a idade adulta. A mulher está
muito acima do peso para os "padrões" sociais, vive em péssimas
condições de alimentação e higiene e sem as intervenções biológicas da medicina
acabou envelhecendo muito.
Se por lado a mãe provocava
repulsa em todos em virtude de seu deteriorado aspecto físico, o selvagem
encanta por sua beleza, pelo seu vigor físico e por suas características
peculiares aos olhos da sociedade fordiana. Ele é levado para ser estudado e é
tratado como um novo animal de um circo: toda a sociedade se volta para ele,
enquanto sua mãe passa dias e noites se drogando com o soma.
O selvagem se apaixona por
Lenina, acompanhante de Bernard na excursão, mas não entende e não aceita os
hábitos poligâmicos da moça. Leitor voraz, ele recita poemas, versos e trechos
de grandes obras como Otelo, Tempestade e Romeu e Julieta mas é zombado pela
sociedade que não teve acesso à leitura e portanto não entende seu jeito
"estranho" de falar.
O selvagem leu tudo quanto pôde
na reserva e através de velhos livros ele exercitou a alfabetização lecionada
pela mãe, questiona tudo à sua volta, é dele que saem as melhores frases e
reflexões. Ele contesta a "felicidade obrigatória", a ausência de
liberdade, a falta de privacidade e individualidade, o soma, o consumo
exacerbado, a falta de afeto nas relações sociais e clama para si o direito de
ser infeliz em um confronto incrível com Mustafá Mond.
"- Mas eu gosto dos
inconvenientes.- Nós, não. Preferimos fazer as coisas confortavelmente.- Mas eu
não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o perigoautêntico, quero
a liberdade, quero a bondade. Quero o pecado."
A distopia de Huxley pode parecer
antiga e distante de nossa realidade, mas em muito se parece com a nossa
sociedade atual. A alienação da sociedade, a busca incessante por uma
felicidade advinda de conquistas materiais, a invasão de privacidade, o uso de
drogas para fugir da realidade, a padronização da beleza e do comportamento,
dentre muitas outras coisas fazem de Admirável Mundo Novo um panorama e parte
do reflexo do mundo em que vivemos. É um livro fácil de ler, envolvente,
criativo e que nos provoca inúmeras reflexões todo tempo, nos levando a
questionar ambos os lados da história, ora o ponto de vista dos
"fordianos", ora do selvagem.
Eu poderia ficar aqui por horas
falando a respeito das questões filosóficas e o quanto este livro é atual, mas
isto tornaria esta resenha ainda maior. Assim, deixarei para fazer estas
reflexões em uma outra oportunidade!
No mais, se você quiser perder o
fôlego e conhecer uma das melhores distopias já criadas, dedique um tempinho
para este livro, que ganhou cadeira cativa na minha lista de favoritos! Espero
que tenha gostado da indicação!
KELLEN PAVÃO
Formada em direito e servidora
pública nas horas vagas, vive para sonhar e sonha para viver. Gostaria de ter
leitura dinâmica e tem extrema dificuldade em falar de si mesma na terceira
pessoa. Enquanto ainda não tem tempo e dinheiro para conhecer o mundo viajando,
conhece pessoas e lugares através dos livros.
Um LIvro Fabuloso, eu ja havia lido, mas, vou ler de novo
ResponderExcluirLivro excelente. Li pela primeira vez quando ainda era adolescente. Vou ler novamente, com certeza, hoje aos 64 anos.
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